quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

SEGUNDO


Japão, era Tokugawa, 1605.

−...uma coisa é certa: o frio está chegando. − disse o velho samurai, quando a última folha seca de outono caiu sobre a toalha da mesa.
− Hai − disse Nui, olhando em direção à janela. As últimas luzes do dia iluminaram seu rosto.
O velho retirou a folha de cima da mesa e a entregou à esposa.
− Eu estou morrendo, minha doce Nui. Logo, não serei mais do que esta folha morta que segura em suas mãos.
− Ora, meu senhor! Por favor, não digas sandices. Ainda tem muito o que viver − disse Nui, servindo delicadamente o chá quente posto a mesa.
− Não... não tenho. Sinto já em meus ossos o frio do inverno. Já mal posso me sentar ou me levantar sem sua ajuda, ou de algum vassalo. Todo o meu corpo agoniza. Meus olhos já não vêem como antigamente. É certo. Não viverei para ver desabrochar os primeiros crisântemos na primavera. Neste inverno, eu me encontrarei com meus ancestrais.
− Meu senhor, não! O senhor não irá morrer, eu lhe cuidarei, e o alimentarei e darei de beber, e no inverno, eu lhe aquecerei com meu corpo e uma boa garrafa de sakê. Sim, eu não sairei do seu lado, estarei sempre contigo, o inverno passará e colheremos muitos crisântemos quando os primeiros raios de sol derreterem a neve.
− Minha doce Nui... − ele acariciou suavemente o rosto dela − Tão jovem, tão cheia de vida... Você veio a mim muito nova, uma criança ainda... Eu já não posso mais cumprir minhas obrigações como marido, e nem saciar seus desejos de mulher. Minhas forças se esvaíram. Hoje, sou apenas uma boa companhia para o chá. Você deve ter um homem que a complete, que você possa amar, e que te ame também, e que possa te dar filhos, e viverem muito tempo juntos.
− Meu senhor, não há homem no mundo que eu possa amar mais, e nem outro que eu deseje mais como marido. Eu o amo, meu senhor. Se um dia se fores, irei junto, para vivermos eternamente no paraíso.
− Agora é você quem não deve dizer tais sandices. Eu vou morrer, Nui, e você continuará vivendo. Mas não vou morrer como um velho senil e doente. Eu trilhei pela isshin nissenbyakudô, servi como kogi kaishakunin por quarenta anos, fui fiel ao bushido e ao shogun, e agora, é meu desejo morrer em batalha.
− Mas, meu senhor... − ela disse, a voz trêmula de quem conhece bem a determinação do marido. Ela amou aquele homem assim que o viu. A princípio, quando seus pais anunciaram a ela que iria se casar, ela relutou. Sentiu-se traída e vendida, aos 13 anos, ainda menina. Se via sendo escravizada por um homem muito mais velho, usada apenas por questões políticas e de status. Mas quando ela viu aquele homem, não desejou outro que não fosse ele, e não se lembrara mais de nenhuma outro amor de infância que não fosse seu amor por ele. Em sua primeira noite, se entregou à ele como quem se entrega à morte, não haveria o amanhã. Com o tempo, aprendeu a controlar seu anseio de tê-lo sempre por perto. Era um homem ocupado, servindo honradamente como o executor oficial do shogun. Aprendeu a esperar preparando a casa para quando ele chegasse: o chá, a cama, o jantar, o banho, o sakê, ela própria, a pele, os pelos, cabelos. Ela o amava, e o ama hoje como se fosse ontem, como se ele não tivesse mudado, envelhecido, perdido o vigor. Ela o amava, e sempre o amaria.
− Mas, meu senhor... o que será de mim. Pobre de mim em sua ausência. Fique comigo, vamos juntos até o fim. Deixe-me desfrutar de cada segundo com meu senhor até sua ida para o outro lado.
− Ahh, Nui... de todos os seus desejos, esse será o único que não poderei atender. Eu sou um guerreiro, e devo partir desse mundo com um guerreiro. E quanto a você, não se preocupe. O homem que me substituirá como seu marido será tão honrado quanto eu, tão nobre quanto, um guerreiro forte e seguidor do bushidô, de confiança e respeito, pois eu morrerei pelas suas mãos.
Ele já havia planejado tudo. No 45° dia de inverno, oito samurais se encontravam no jardim de sua propriedade. Oito dos mais nobres guerreiros, vindo de oito províncias distintas do Japão. Cada um com sua escola, seu estilo de luta. Sakon Shino, de Musagi, e seu estilo Mijin-Ryu. Benma Hatori, de Sagara, e seu estilo Soiou-Ryu. Ranma Hanzo, de Kouzuke, e seu estilo Nami-Kiri No Tati. Tenma Hidari, de Shimozuke, e seu estilo Sakate Hidari Iai. Daigoro Yagyu, de Bizen, e seu estilo Tekkô-Kagi (luva com ganchos). Naizen Kato, de Shimouza, e seu estilo Naginata (lança com lâmina de meia-lua). Juunai Kutiki, de Awa, e seu estilo Niten Ichi Ryu. E por último, Sanjô Kokagi Munechika, da capital, Edo, e seu estilo Soiou-Ryu Zambatou. Oito grandes homens, escolhidos de maneira meticulosa, sim, por que ele sabia que, ao morrer, sua fortuna e seu império teriam destino incerto, já que ele não tinha um herdeiro, e, mais incerto ainda, o destino de sua amada esposa. Sabendo disso, ele escolheu esses homens baseado em sua admiração por eles e em seu conhecimento de cada um. Um deles herdaria toda a fortuna do kogi kaishakunin Hiroshi Ogami Itto, já que ele nunca tivera um filho, nem com sua atual esposa, Nui, e nem com as outras 5 que teve em sua vida. Outros deles tombariam pela sua espada.

Ao final do combate, apenas um homem se erguia intacto no jardim da mansão. Dois, na verdade. Naizen Kato não teve a oportunidade de lutar contra o velho samurai, que jazia inerte no centro da batalha. O sangue que jorrava de seu pescoço sibilava ao vento, como o vento frio do inverno, um assobio baixo e incessante. Moga-Ribue, como era conhecido esse efeito. Poucos homens ouviram esse som, pois poucos tinham habilidade suficiente para desferir tal golpe. Hiroshi Ogami Itto teve esse privilégio algumas vezes, e antes de desfalecer por completo, pode ouvir o zunido vindo de seu próprio pescoço. E pode ver também Sanjô Munechika cumprimentá-lo honradamente, a lâmina de sua dôtanuke brilhando ao vento de inverno. Ele morreu feliz, sabendo que, dentre todos os grandes homens que se encontravam ali, era Sanjô Munechika, de Edo, seu antigo pupilo e atual Kogi-Kaishakunin do Shogun, quem ocuparia também seu lugar em sua herança, sua casa e sua esposa. Era um bom homem, um exímio samurai, e um dedicado seguidor do bushidô. Ele também trilhava pela isshin nissenbyakudô, e vivia pela lei da espada.

Nui estava muito triste pela perda de seu amado, mas também feliz por ele ter morrido da maneira que desejou. Prometera a si mesma fazer de tudo para honrar a vontade de seu marido e senhor, prometera até mesmo amar seu novo esposo, dar a ele um filho, cuidar dele como havia cuidado de seu amado, dar-lhe banho, esfregar suas costas, preparar seu chá, desejá-lo e fazer suas vontades na cama. E assim ela o fez. Sanjô Munechika era um homem muito parecido com o antigo senhor, ocupado e preocupado por conta da grande responsabilidade de seu cargo, mas atencioso, carinhoso a sua maneira, bonito a sua maneira, forte, a ponto de sua virilidade exaurir quase por completo sua esposa, fazendo com que, às vezes, ela ficasse em sua cama o dia inteiro no dia seguinte, se levantando apenas no final do dia, antes que o marido chegasse, pra se preparar para ele novamente: sal nos pés, aquecendo-os junto à lareira, óleo de gergelim pelo corpo, para uma pele macia e essência de flores nas partes íntimas, um pouco no pescoço, pois ele a adorava assim.

E assim ela seguia sua vida.

Mas só ela sabia da saudade que sentia de seu senhor, Hiroshi Ogami Itto. E de como ela ainda o amava, e como ela orava pela sua alma no paraíso, esperando pacientemente o dia em que se encontraria com ele. Nem a chegada do pequeno Shinnosuke fez com que ela amasse mais Sanjô do que seu antigo senhor. Era uma criança saudável, amável, estranhamente quieta. Quase não emitia nenhum som, chorando apenas um pouquinho quando tinha fome. Era desperto de dia, e dormia profundamente à noite, contrariando todas as regras inerentes às crianças daquela idade. Quem olhasse Nui, dizia que era uma mulher feliz e realizada, tendo um filho lindo e dois grandes homens que a amara. Mas ela amara apenas um só, e isso fazia com que ela se sentisse resignada, na verdade, esperando, dia após dia, sua hora de se juntar com seu amado no paraíso.
Sanjô Munechika aprendera a amar sua esposa, quase imposta a ele pela convocação de seu antigo mestre. Era uma esposa dedicada, companheira, ótima amante, e agora, uma ótima mãe. Era linda, e ele tinha muito orgulho dela, e se sentia honrado e ser o segundo marido e segundo homem em sua vida, substituindo aquele que lhe ensinara o verdadeiro caminho de um samurai, a arte da espada e da vida, o bushidô e o kantôrai. Ele se dedicava a ela, da maneira dele, sendo um bom marido, bom amante e bom pai. Às vezes, passavam horas conversando sobre coisas triviais da vida, aos quais ele não era muito dado em outros tempos, e conversavam sobre o antigo mestre, e ele se dava à liberdade de falar sobre antigas amantes a ela, tomavam sakê, riam e faziam amor loucamente, ali mesmo, sobre o tatami da sala de chá. Criou-se, assim, um casamento mais baseado em amizade e companheirismo do que em amor real, pois ela o amava a sua maneira, mas não era como o amor que ela sentia pelo seu antigo senhor, e ele a amava a maneira dele, pois ele nunca havia amado ninguém.
Mas ele sabia que Nui não o amava, e isso o deixava incomodado. Não por uma questão de orgulho ou posse, mas por que ele sabia que ela não era feliz ao seu lado como fora com seu antigo mestre. Ele via tristeza em seu rosto, e isso o entristecia também. Ele a amava, à sua maneira, e queria que ela fosse feliz.
− Você me ama, Nui? − ele perguntou um dia, em meio ao chá, uma pergunta que mais parecia um golpe, com uma destreza e precisão que só um samurai de sua estirpe poderia desferir.
− Sim − disse Nui, sem exitar, mas também sem olhá-lo nos olhos. − Sim, meu senhor, eu o amo como meu marido.
− Entendo... − ele disse, levando a cuia de chá à boca com as duas mãos. − E existe outra maneira de se amar alguém?
− Ora, meu senhor, então não sabe que existem várias maneiras de se amar alguém? − disse Nui, com um leve sorriso no rosto. Não de escárnio, nem de ironia. Apenas um sorriso simpático.
− Os caminhos de um samurai são marcados pela honra, disciplina, coragem e devoção ao seu mestre. Os caminhos do amor são obscuros a nossa classe.
− Pois sim, meu senhor, existem várias maneiras de se amar alguém. Amor de pai, amor de mãe, amor de irmão, de amigos. Nunca conheceremos a verdadeira face do amor, pois não existe só uma face. Teríamos que viver várias vidas para conhecer todas.
− Como você ama Hiroshi Ogami Itto? − ele a olhou fixamente nos olhos.

Nui ficou em silêncio por um instante. A pergunta feita no tempo presente indicava que Sanjô sabia que sua esposa ainda amava seu antigo mestre, e isso a desconcertou. Ela repousou a sua cuia sobre a mesa, retirou de seu quimono a folha seca que Hiroshi havia dado a ela anos atrás.
− Vê esta folha, meu senhor? Ela tem sido meu Uti-ihai por longos anos, desde que nosso senhor se foi. Todo dia eu rezo em frente a essa folha, que eu preservei com todo cuidado e intacta. Por respeito e amor ao senhor, meu marido, não tenho em sua casa um templo dedicado a Hiroshi, pois esse templo reside em meu corpo e mente. Sinto sua falta, falta da sua companhia e de nossas longas horas conversando no jardim, e de dormir ao seu lado. Como é meu amor por ele? É um amor que não é encontrado em nenhum outro lugar do mundo, e nem tem uma face conhecida, pois é um amor que só eu posso conceber, um amor maior que tudo, tão grande que posso, honradamente, dedicar uma pequena parte desse amor a essa casa, ao nosso filho e ao senhor.
− Então o amor que você sente por mim é o que vem de seu amor por ele?
Nui ficou ruborizada.
− Sim, meu senhor. Desculpe não ter em mim o seu próprio amor.
− E não se sente mal em ter que dividir sua cama, seu corpo, sua vida, com uma pessoa que você não ama?
− Não, meu senhor, absolutamente. O senhor é um bom homem, honrado, digno da grande incumbência que herdou de meu antigo senhor e seu antigo mestre. Fico feliz em realizar o desejo de meu amo, meu amado, que era o de continuar viva e servir ao homem que o elevaria aos céus.
− Não deseja estar com ele?
− Oh sim, meu senhor. Morro todo dia de saudade, e morrendo aos poucos todo dia, um dia me encontrarei com ele.
− Não ama seu filho?
− Oh claro, meu senhor! Amo nosso filho, mas cada pessoa trilha seu próprio caminho. Um filho só é nosso quando o carregamos em nosso ventre. Uma vez no mundo, ele se torna filho do mundo.
− Entendo... − disse Sanjô, sorvendo o último gole da chá. − Eu me sinto honrado em ter sido aluno de nosso antigo mestre, e agora, ser herdeiro de sua fortuna, sua casa e sua esposa, e seu antigo posto no governo. Mas creio que eu deva escrever minha própria história, portanto, eu a liberto para encontrar com seu amado.

Nui não entendeu o que Sanjô quis dizer com aquilo, até que ela o viu retirar de seu quimono sua adaga, e a depositar sobre a mesa.
− Se queres encontrar com seu amado, vá.
− Meu senhor! − disse Nui, envergonhada, se ajoelhando aos pés de Sanjô − Por favor, eu não quis ofendê-lo! Peço-lhe perdão!
Ele a abraçou.
− Você não entendeu − ele disse. − Eu não levei o que você me disse como uma ofensa, muito pelo contrário. Você sempre foi uma mulher honrada, esposa dedicada, uma amante espetacular, e agora, uma mãe formidável. Por ser essa mulher tão forte, eu aprendi a amá-la, e tudo o que eu desejo na vida é vê-la feliz. Mas isso não vai acontecer aqui, nesse mundo. Você só alcançará sua felicidade ao lado de nosso antigo mestre. Portanto, eu a liberto para encontrar com ele no paraíso. Se você o ama tanto, cometa o seppuku, e a vida eterna a esperará.
− Meu senhor − ela disse, com os olhos em lágrimas −, eu lhe agradeço, mas tal honra só é concedida aos grandes samurais. Eu não poderia, sendo uma simples esposa, dona de casa e mãe.
− Como marido, eu lhe concedo esta honra. E como kogi kaishakunin oficial do shogun, eu lhe digo que não conheci pessoa mais digna. Você é uma grande guerreira, uma fiel seguidora do bushidô, e sendo assim, eu lhe saúdo.

E se curvou ante aos pés dela.

− Agora venha, despeça-se de nosso filho. E não se preocupe com sua reputação, ela não será manchada. Eu a defenderei até o fim dos meus dias. E não deixarei que você sofra por muito tempo. Eu serei seu segundo.

Nui se levantou, beijou Shinnosuke na testa e fez uma oração pela sua alma. Se despediu dos criados mais antigos, deu ordens de como deveria ser mantida a casa após sua partida, se dirigiu ao centro da sala, e sobre o tapete branco se ajoelhou, retirou o shigoki, abriu seu quimono, pegou a velha folha seca que Hiroshi lhe dara e a envolveu no cabo da adaga, e quando Sanjô se posicionou atrás dela, com a kataná em riste, afundou a adaga em seu ventre, abrindo um corte horizontal e, sem retirar a lâmina, outro corte vertical, e antes que suas vísceras caíssem pelo tapete, sua cabeça já estava separada de seu corpo.

− Namu Amida Butsu... − orou Nui, ainda de olhos fechados, sentindo uma brisa suave de primavera, e o aroma de crisântemos lhe fazia se sentir em casa.
− Minha amada! − ela ouviu, e abriu os olhos, e lá estava Hiroshi Ogami Itto, tal qual ela o conhecera, sentado em posição de lótus à cabeceira da mesa. − Você veio. Venha, sente-se comigo. Eu lhe servirei o chá.
Ela se sentou, e o entregou a folha, agora verde e vistosa, que Hiroshi havia lhe dado em vida.

Um comentário:

Unknown disse...

Ótimo conto, traduz com perfeição os ideais orientais de honra, respeito e dedicação. Parabéns, Tim.
Abraços!